quarta-feira, 29 de junho de 2011

COLUNA DO JORNAL "O SUL" (25/6)

O CASO DA PRISÃO DO PROMOTOR

Foi a notícia da semana: “defensora pública prende promotor de justiça”. Minha reação imediata foi uma onomatopeia (tsk, tsk, tsk). Sem precisar discutir a “causa”, lembremos: no meio do júri, o promotor teria proferido palavras ofensivas à juíza. A defensora teria dito à juíza: ele está lhe desacatando. Prenda-o... A juíza disse que isso era caso para a Corregedoria. Ato contínuo, a defensora disse algo do tipo “então o prendo eu”. E o fez, segundo ela, como “qualquer do povo”...!

QUEM PODE PRENDER?

A aguerrida defensora deveria ter lido a Lei 8.625 (art. 40), o Código de Processo Penal e a Constituição. Pela Lei, um Promotor somente pode ser preso em flagrante por crime inafiançável ou por ordem escrita do Tribunal (nem de um juiz a ordem pode ser); pelo CPP, sabe-se que qualquer do povo só prende quando não tiver autoridade para determiná-la; e, pela Constituição, sabe-se que, ao contrário da defensora, o Promotor possui foro privilegiado.

A SUCESSÃO DE EQUÍVOCOS

Um júri não é um circo. Não deve servir para bate-bocas e disputas corporativas. O Promotor, com seu comportamento, “não se ajuda nem um pouquinho”, como se diz lá no Itaqui. Entretanto, se assacou ofensas, isso é matéria para processo criminal e administrativo, feitos a posteriori. Mas, insisto, mesmo que o desacato estivesse escancarado, não caberia a prisão em flagrante. E muito menos por obra da defensora. Aliás, em um primeiro momento, a juíza acertou. Instada pela defensora, disse que não o prenderia. Mas, em um segundo momento, errou feio ao não admoestar a defensora, que acabara de cometer um disparate (e não adianta dizer, agora, que há uma diferença entre “voz de prisão” e “prisão efetiva”... - sic). Se a defensora desconhecia a lei, a juíza, então, deveria tê-la corrigido. Com isso, em um terceiro momento, o Promotor, de acusado, passou à vítima, porque o privaram de sua liberdade.

LENDAS URBANAS E CORPORATIVISMO

Assim se formam as “lendas”. A internet está repleta de fofocas, dando conta do “poder de prisão” da defensora pública. Calma, pessoal. A coisa não é bem assim. Penso que a própria Defensoria Pública, instituição tão importante, deveria vir a público para esclarecer isso, para que não fiquemos apenas com as versões emocionais dos “contendores”. Com honestidade intelectual, vamos esclarecer para as pessoas que pagam nossos bons salários, quem, afinal, pode prender em uma seção do júri...! Ou isso é uma “questão de mera opinião”? Meus leitores entendem o que quero dizer? Ou a prisão poderia ter sido feita ou não. Mas, por favor, vamos deixar isso claro, antes que as lendas se consolidem, ao calor das paixões corporativas. E quando falo de corporativismo, lembro-me de uma história que se passou comigo. Estava eu no Rio de Janeiro, convidado para um painel sobre garantias processuais na Defensoria Pública. No meio das falas, fomos interrompidos - diga-se, com toda a lhaneza - pelo Defensor-Geral, anunciando que uma defensora tinha obtido um habeas corpus para um indivíduo acusado de ter matado parte de uma família, em um caso rumoroso. E todos aplaudiram entusiasticamente. Tudo bem. Como sou um militante das garantias dos réus, tendo sido um dos primeiros após a Constituição a radicalizar isso, sou insuspeito para falar sobre essas coisas (além disso, várias vezes escrevi que a ausência de Defensoria nos Estados configura inconstitucionalidade, além do cabimento de ADPF). Meus livros e minhas ações falam por mim. Mas - e rogo para que não me entendam mal - naquele episódio do Rio uma coisa me deixou intrigado e não consigo tirá-la da cabeça: por que as palmas prolongadas? Precisavam comemorar a soltura do “cara”? Ou, quem sabe, a exemplo do que possa ter ocorrido no júri desta semana em Porto Alegre, o acusado era um troféu em disputa? Na República, réu não rima com troféu... Peço que reflitam a respeito!

domingo, 19 de junho de 2011

Sobre o Congresso em Curitiba (em homenagem ao Jacinto)

Um seguidor do facebook pediu para que eu comentasse o congresso em homenagem ao Jacinto, em Curitiba (maio de 2011). Lá estive e fiz a conferência (palestra) de encerramento da noite de sexta-feira, dia 6 de maio. Decidi levar a sério uma certa promessa que me fiz há pouco tempo, que, aliás, coloquei em prática em Natal e depois em Salvador. Trata-se do "projeto" "vou voltar aos velhos tempos de mim", isto é, resgatar a velha crítica à velha dogmática jurídica. Essa critica eu já a faço desde antes da Constituição de 1988 (na verdade, considero-me "recepcionado pela Constituição", portanto, sou um indivíduo constitucional...!). Pensei que seria necessário retomar a crítica, que tem sua raiz em Luis Alberto Warat e Tercio Ferraz Jr., para referir apenas estes dois. Na palestra em homenagem ao Jacinto, mostrei que a dogmática jurídica é a responsável direta pela crise do direito. Vejamos: o direito penal fracassou. Para verificar isso, basta ver a falta de uma filtragem hermenêutico-constitucional, que, feita seriamente, reduziria o Código Penal à pó. Isso, aliás, venho denunciando há mais de quinze anos. Ou há mais tempo. Um país em que o furto de um botijão de gás feito por duas pessoas tem a pena semelhante à lavagem de dinheiro não pode se dizer democrático no sentido de que fala a Constituição...! Sem contar o "espetáculo" que é a comparação do crime de sonegação de tributos e o de furto, no que tange ao pagamento do "prejuízo". E os livros "manualescos"? Tem livro que ensina que "agressão atual é aquela que está acontecendo e iminente é a que está por acontecer"; "coisa alheia no furto é aquela que não pertence à pessoa"; "cadáver não pode ser vítima de homicídio"; "noite é a total ausência de luz"... Que coisa, não? I rest my case! No processo penal, o fracasso advém do modelo inquisitivo. Veja-se o escândalo que é a noção de "verdade real" assumida pela literatura proecssual penal de terrae brasilis. A doutrina, modo geral, faz um sincretismo teórico entre o paradigma objetivista da metafísica clássica e o paradigma da filosofia da consciência. Isso pode ser visto em autores que vão desde Damásio de Jesus à Ada Pellegrini Grinover. Alguns processualistas sedizentes críticos tentam resolver "a questão da verdade" assumindo uma postura relativista, dizendo que "toda a verdade é relativa"... Que coisa, não? Há um autor que fez uma tese de doutorado para dizer que "cada um tem a sua verdade"...! De todo modo, se alguém quer saber sobre o destino do processo penal, basta ver o "caso Edmundo" ou o "caso Pimenta Neves". Fracasso total! Agora vem aí o "novo" Código de Processo Penal, que resolve o problema da gestão da prova a partir da tese do "livre convencimento". Quer dizer: em pleno paradigma da intersubjetividade, aposta-se na filosofia da consciência. Notícia: o projeto do CPP contém trinta previsões de atuação "de ofício do juiz". O mesmo ocorre no Processo Civil, em que o "novo" CPC também aposta nesse "livre convencimento". Ou seja, para resolver o problema do processo, vamos apostar no protagonismo judicial. Que leitura de Oskar von Bülow, não? Socialismo processual nestes tempos pós-positivistas e de predomínio do paradigma da linguagem? Por isso, disse com todas as letras no Congresso em homenagem ao Jacinto: "o direito traiu a filosofia". Só para frisar: a grande preocupação dos cursos de pós-graduação em direito no Brasil tem sido o acesso à justiça. Pois bem. Desde a lei 8.038/90 o establishment tem construído mecanismos com claro objetivo de obstaculizar a "subida" de recursos ao STJ e STF. Vejam as leis 9.137, 9.756 etc. Vejam as súmulas vinculantes e a repercussão geral. Esse conjunto de mini-reformas, todas gestadas pelos setores "instrumentalistas" da dogmática jurídica, nada resolveram. E por quê? Porque apostaram - e apostam - no protagonismo jduicial, que é o cerne do instrumentalismo...! Tanto nada disso deu certo, que, agora, o Presidente do STF propõe a PEC dos Recursos. O que é isto, senão a confissão de que as mini-reformas fracassaram? A única coisa que ninguém diz é: quem são os responsáveis? A doutrina, no Brasil, não doutrina mais; na verdade, tem sido caudatária daquilo que os Tribunais decidem. Assim, pergunto: qual é o papel dos juristas? Vale a pena estudar? Vale a pena pesquisar? Para que serve a doutrina? Por tudo isso, venho propondo - e deixei isso muito claro em Curitiba - que os setores críticos do direito façam um "constrangimento epistemológico" acerca daquilo que os Tribunais decidem. A doutrina deve doutrinar. A crítica deve criticar. Foi uma conferência que durou 50 minutos, que passou das onze da noite. E ninguém arredou pé. E isso me deixou muito feliz. Por vezes pessimista, nestes momento, me transformo. Bueno. É isso. Aproveito para informar que, na semana que passou, a equipe do Dasein, formado por Clarissa, Ariel, Santiago, Danilo, Fabiano e Rafinha fizeram a revisão da quarta edição do Verdade e Consenso, que sairá pela Saraiva em breve. Saudações.

sábado, 11 de junho de 2011

COLUNA DO JORNAL "O SUL" (11/06)

A METÁFORA DA CORRUPÇÃO E A CHURRASQUEIRA – O INÍCIO

Era uma vez um povo que vivia feliz em uma floresta. Vegetariano, não sabia dos prazeres da carne (fixemo-nos na ambiguidade). A falta de predadores naturais fez com que a população de porcos explodisse. Certo dia, um incêndio, fortuito, dizimou parte da floresta, queimando muitos porcos. O povo sentiu pela primeira vez o cheiro de leitão à pururuca...! E caiu de boca. Desbragadamente. Passado algum tempo, as pessoas queriam mais carne assada. E, prontamente, incendiaram mais florestas. E assim se sucedia. Fome por carne, florestas ardendo.

O EXTRATIVISMO I – SUGAR TUDO DO FLORESTÃO

Com o tempo, as florestas escassearam. Alguém teve a ideia de plantar novas florestas, para que pudessem ser queimadas e, assim, assar mais porcos. E assim se fez. Mesmo assim, faltou floresta. Então, implantaram faculdades onde se estudavam técnicas pelas quais se plantavam árvores que cresciam mais rapidamente e, assim, mais porcos podiam ser assados... Novos métodos chegaram a multiplicar o espaço plantado e a redução no tempo de crescimento das árvores em até vinte (captaram?) vezes. Havia florestas “classe A” que já produziam porcos temperados. Suculentos. E sem colesterol.

O EXTRATIVISMO II – O CRESCIMENTO DA “MÁQUINA”

O ápice foi quando criaram um sistema complexo de controle estatal do plantio de árvores, das queimadas, dos impostos sobre os porcos, etc. Siglas e mais siglas. Controladorias, polícias, ministérios, juizados, tribunais, defensorias (sem falar nos milhares de cursinhos de preparação para os concursos públicos...). Ah, também havia TC’s (Us e Es). Tudo para controlar esse “sistema”. Sim, havia muitas consultorias. E ONG’s. Tudo gravitava em torno do “florestão” (chamemos de Estado). Festa! Um senador (socialista) gastou 25 mil pés de porco (essa era a moeda) com dentista, mandando a conta para o Senado (sim, havia Senado). Claro, para comer tanta carne, bons dentes. Vagas nos hospitais? Nem falar. Ora, os florestinos (nome dos nativos) que mastiguem folhas.

SÓ LADRÕES DE PORQUINHOS...

Como funcionava isso tudo? Bem, toda essa estrutura servia para “pegar” os “ladrões de porquinhos” (choldra) e proteger as grandes plantações de árvores e os grandes vendedores de porcos assados. Nos últimos anos, não havia notícia de que algum “ladrão de porco de colarinho branco” (ou seria “ladrão de colarinho branco de porco”?) tenha sido apanhado. Bem, até houve um caso (o de um banqueiro, dono de muitas florestas), pego pela famosa operação “sátira-agarra”. Esta, no entanto, foi anulada pela aplicação da tese dos “frutos da árvore envenenada”. Percebem? Árvores, florestas... Sem fazer trocadilho, mas dizem que não havia a “fumaça do bom direito” (fumaça, fumus, florestas...). Outro dado: enquanto pela Lei da Lavagem de Pés-de-Porco foram condenados apenas 17 pessoas em 13 anos, houve mais de 150.000 condenações de ladrões de rabo-de-porco (conhecidos na Floresta como “pés-de-chinelo”).

O SUPERFATURAMENTO

Para se ter uma ideia: todo o material vendido para o Florestão, como mudas, adubo, fósforos, máquinas de ensacar fumaça, custava, segundo a revista “de olho na floresta”, até 145% a mais. Consta, ainda, que a Copa das Florestas iria custar 25 bilhões de dólares (1 U$ = 1,60 PDP). Para isso, será acelerada a queima de florestas. Serão plantadas 9 novas florestas. Houve até a liberação das licitações para compras de mudas e fósforos.

CONCLUSÃO

Tudo anda(va) “bem” até que chegou um sujeito e disse: não entendo. Para que incendiar tanta floresta, para que tanta tecnologia para multiplicação de florestas, imensas e caras estruturas superpostas, etc? Não seria mais fácil construir churrasqueiras para assar a carne? Fácil de controlar, menos corrupção, menos gastos estatais. Ao que os líderes, com os bigodes engraxados, responderam: isso a gente já sabe. O problema é: “o que é que a gente vai fazer com toda essa estrutura já montada”? Ao longe, era possível ver novos incêndios...! E todos se regozijavam. Afinal, onde há fumaça, há fogo! Sem trocadilho.
PS: esta metáfora me foi contada em um supermercado de terrae florestalis. Na hora em que eu estocava comida...!

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Notícia sobre a Conferência de Direito Constitucional Aplicado - Centro de Convenções de Salvador

Aproveito o domingo à noite para remeter pequena notícia sobre a conferência no Congresso de Direito Constitucional Aplicado, no Centro de Convenções de Salvador. Congresso enorme, com a presença de Gilmar Mendes, Carmen Lucia, Peter Häberle, Ingo Sarlet, Luiz Alberto David de Araújo, entre outros. Meu tema foi Perspectivas Críticas do Direito Constitucional. Depois de uma certa decepção com a conferência em Recife, conforme relatei em outro momento, decidi fazer uma conferência ao meu velho estilo. Posso chamar isso de "voltar aos velhos tempos de mim". Por isso, falei sobre o conceito de ideologia, desmontei o sentido comum teórico dos juristas e tudo o que ele representa no plano da sustentação da dogmática jurídica. Penso que essa "capa de sentidos" que é a dogmática necessita ser desmi(s)tificada. Lembrei de contar na palestra a parábola das lavadeiras, que inventei há alguns anos (na verdade, há uns quinze anos atrás). Duas lavadeiras lavavam as roupas quando, ao longe, avistaram uma batalha, na verdade, um "monte de gente brigando". Disse uma lavadeira a outra: voce está vendo o que eu estou vendo? Estou, respondeu a outra. E o que me importa? Um bando de gente brigando... Vamos fazer nossa obrigação: lavar a roupa. Pois bem. Aquele monte de gente era, na verdade, a Batalha dos Guararapes, que mudou a história do Brasil. A quetsão é: ver não é igual a compreender. É isso: no direito é exatamente assim. Como os juristas não conseguem perceber as iniquidades do Código Penal? Uma filtragem hermenêutico-constitucional realmente feita no Código Penal faria com que este ficaria reduzido a pó. Mas o que os manuais fazem? Continuam reproduzindo as mesmas coisas de antes da Constituição. Com raras exceções, os juristas de terrae brasilis continuam a apostar na velha teoria do bem jurídico. E isso se aplica aos demais ramos do direito. O que dizer do CPC? O instrumentalismo processual, a partir de uma leitura "torta" do ativismo proposto no século XIX por Oskar von Bülow, conseguiu fragmentar o processo brasileiro, a ponto de as mini-reformas não terem resultado em nada... Na verdade, "em tudo": o protagonismo judicial transformou o processo em uma corrida de obstáculos, sendo a preocupação fundamental a de buscar efetividades quantitativas. As súmulas vinculantes, a repercussão geral e a PEC dos Recursos vieram de onde? Da fragmentação provocada pelo protagonismo sem freios. Afinal, como é corrente na comunidade jurídica, a interpretação da lei é um ato de vontade. Por isso, jactam-se em dizer que "a decisão judicial é um ato de consciência" (decido conforme minha consciência?). Por isso, o direito traiu a filosofia. Os projetos do CPC e do CPP, prestes a serem aprovados, nada mais são do que produtos de um atraso filosófico, uma vez que apostam no livre convencimento. Ora, isso não é nada mais, nada menos, do que a velha filosofia da consciência. Mas adianta denunciar isso tudo no seio da comunidade jurídica? Há gente que diz que o "livre convencimento" está no art. 93, IX, da Constituição. Ledo engano. Na verdade, trata-se do contrário disso. A exigência de fundamentação constante no art. 93, IX quer dizer "fundamentação da fundamentação", ou seja, aquilo que venho denominando de "accountability hermenêutica" (há vários textos em que explico isto). Ora, não interpretamos para compreender, e, sim, compreendemos para interpretar. Isso faz a diferença! Claro que não disse isso nestes termos na conferencia em Salvador. Procurei fazer a crítica de outro modo. Mostrei a crise do direito e da dogmática através de exemplos vários (além de novamente mostrar os problemas decorrentes do uso absolutamente inadequado da ponderação aqui em terras brasileiras). Tematicamente, procurei denunciar o desprezo que a dogmática jurídica tem, quando interessa, pela "letra da lei" (não esqueçam de ler, para os que ainda não fizeram, o texto acostado em outra mensagem do facebook - Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista?). Recentemente, o STF, no julgamento de um habeas corpus, por uma de suas turmas, deixou assentado que o descumprimento do art. 212 do CPP é apenas um caso de nulidade relativa. Errou o STF. Ora, o art. 212 é uma conquista da democracia, porque institucionaliza o "princípio acusatório". O STF disse que era aplicável o velho princípio geral do direito, denominado "não há nulidade sem prejuízo". Ora, princípios gerais do direito eram axiomas inventados no século XIX com o propósito de "fechar" o sistema decorrente do positivismo exegético. De que modo podemos falar ainda de "princípios gerais do direito" em pleno Estado Democrático de Direito? Pode um velho axioma inventado no sec. XIX valer mais do que uma lei votada democraticamente (a nova redação do art. 212?). Pode um axioma suplantar um direito fundamental? Esse é o problema: juristas como Luis Flávio Gomes e Guilherme Nucci sustentam que a nova redação não deve ser aplicada...! E parte do Superior Tribunal de Justiça (onde a discussão está aparentemente empatada) cita a doutrina dos penalistas paulistas. A questão é: de que modo um Tribunal pode deixar de aplicar uma lei votada democraticamente sem aplicar a jurisdição constitucional? É possível deixar de aplicar uma lei simpelsmente porque, no dizer de Nucci, melhor mesmo é "manter a tradição", na qual o juiz é o inquisidor-mor? Enfim, com vários exemplos e inserções do direito e literatura, o resultado da conferência foi absolutamente reconfortante. Diria que foi emocionante. Aplausos de pé durante vários minutos, filas enormes para autógrafos e fotografias. Alunos sedentos de conhecimento e de crítica. Que coisa bonita. Gente que fez mais de mil quilômetros para assistir as palestras. Gente fã do programa direito e literatura. Alunos que não perdem um programa. Alunos que trazem monografias de graduação para eu ler. Gente que não tem dinheiro para comprar os livros e que pede autógrafo nos cadernos e nos crachás. Há momentos que é difícil de conter a emoção nestas ocasiões. PS: contei de novo o Medida por Medida, de Shakeaspeare, para mostrar o dilema entre "objetivismo e subjetivismo" (no Hermenêutica Jurídica em Crise conto isso melhor). É isso, por enquanto. Ariel, Cla e Malu: gracias pela "janela" do face. Quando der, mando notícias.

COLUNA DO JORNAL "O SUL" (28/05)

PRISÃO EM “FRAGRANTE

Leio que meio milhão de crianças utilizam nas aulas um livro chamado Por um mundo melhor, no qual consta: “Você pode estar se perguntando:  - Mas eu posso falar os livro? Mas claro que pode”. Dizer “nós pega o peixe”, para o gênio-autor, também pode. Não aceitar isso seria “preconceito linguístico”, diz ele.  E assim por diante. Pior: a “viúva” pagou uma fortuna por esse material apedêutico. Tem que “prendê” em “fragrante” esses “cara”, não acham? Sou um “preconceituoso linguístico”. Confesso!

VAMOS (SUPER)FATURAR A COPA

Não se fala de outra coisa: a Copa vai custar para a “viúva” mais de R$35 bilhões, fora os 20% da corrupção. Ao mesmo tempo, as pessoas tomam soro em pé na rede hospitalar. Só o percentual da corrupção já daria para construir vários hospitais. E não se diga que fazer esse tipo de comparação é demagogia. Os números são doloridos. Sangram. Por falar em Copa: “se não vamos faturar a Copa no campo, fora dele vamos SUPERFATURÁ-LA”. Entenderam?

“LA LEY ES COMO LA SERPIENTE”

Todo mundo sabe que o Código Civil é feito para “os que têm” e o Código Penal para “os que não têm”. Nos últimos dez anos, dos quase 700 projetos de lei no Congresso, menos de 10 se referem aos crimes do colarinho branco. Os demais projetos são para endurecer as penas dos crimes da “rafanalha”. Digo isso quando descubro que o Congresso vem “segurando”, desde 2005, a votação da Lei que criminaliza o enriquecimento ilícito de funcionários públicos. Outra notícia: desde 1998, somente 17 processos por lavagem de dinheiro resultaram em condenação final. Ao mesmo tempo, foram condenadas mais de 175.000 pessoas por furtos e estelionatos...! Tinha razão o campônio salvadorenho: “La ley es como la serpiente; sólo pica a los descalzos”.

INDIGNAI-VOS!

Um livro com esse nome faz enorme sucesso na Europa. Trata-se de um manifesto de um herói da resistência francesa, Stéphane Hessel, hoje com 93 anos. Quando vejo a crescente estandardização da cultura, a imbecilização cotidiana, livros “ensinando” aos alunos que falar errado está certo e os cidadãos transformados em “consumidores” reféns do 0800, penso nesse livro. Sim: reclamem, protestem. Para começar: não comam mais pastéis que esfarelem; não comam em restaurantes que não tenham proteção contra os perdigotos (cuspe); exijam o CPF e o nome da mãe do atendente do 0800 (e da NET); multem os azuizinhos; não façam musculação no Estádio Olímpico (podem vir a se lesionar); não aceitem que Pedro Bial diga que Big Brother é igual a Guimarães Rosa... Também não acreditem na “confidencialidade” dos contratos do Palocci. Enfim, indignai-vos!    

POR ÚLTIMO...

Sabem como é o apelido da empresa do Palocci? Verba Life. O lema da firma: “Quer enriquecer? Pergunte-me como”.  Deu para sacar? (P.S.: sacar, aqui, é no sentido de entender). E, não esqueçamos: vamos estocar comida!

AULAS NA UNIVERSIDADE JAVERIANA (BOGOTÁ) / Cátedra Internacional - Professor visitante

Bueno, foi uma semana cansativa, mas muito gratificante em Bogotá. Os alunos do doutorado em Direito da Universidade Javeriana deram um um bom retorno. Foram cinco encontros, de 3 horas cada (de lunes a viernes). Foram horas mesmo e não horas/aula. Consegui passar um extenso programa, mormente porque se tratava de curso de doutorado. As aulas, que, a princípio, deveriam ser ao estilo "conferencia-europeia-lida", acabaram sendo totalmente expositivas (em castellano, é claro). É que muitos alunos não possuiam os fundamentos filosóficos que o conteúdo programático exigia. Por isso, resolvi explicar detalhadamente. Em linhas gerais, foi o seguinte: Do positivismo primitivo-exegético até a "viragem kelseniana". Da razão à vontade. O positivismo jurídico e a "questão dos princípios" (gerais e constitucionais). Depois passei para as críticas ao neoconstitucionalismo. Avançando, trabalhei o contraponto hermenêutica-teoria da argumentação juridica (claro que depois de explicar a evolução da hermenêutica, de Dannhauer até Gadamer). Ao final, apresentei a minha tese de "resposta adequada à Constituição", a partir das seis hipóteses pelas quais o Judiciário pode deixar de aplicar uma lei (fora disto, deve se candidatar a deputado) e os cinco princípios que conduzem à resposta correta. Foi uma experiência muito interessante. A Universidade Javeriana é enorme. Possui trinta mil alunos em Bogotá. Na Faculdade de Direito, menos de mil. A pós-graduação (stricto sensu) possui cerca de uma centena de alunos, mais ou menos como a Unisinos. Senti-me em casa. Aproveitamos - Rosane e eu - para "traçar" Bogotá, especialmente a culinária. Excelentemente bem tratados. Pessoas simpatissíssimas. Vôo TACA; na ida, classe executiva, maravilha, sorry periferia; na volta, não tinha lugar - a sorte foi arrumar a "saída de emergência", onde tem mais espaços. De todo modo, vale informar: os aviões da TACA são muito, mas muito mais confortáveis que os da TAP, Lufthansa (falo do setor "patuléia", isto é, da classe econômica). Já acertamos as aulas para o ano que vem. Claro: o conteúdo é hermenêutica. Estamos abrindo espaço na América Latina também. Antes que alguém pergunte: Bogotá é bastante segura. Claro, com tantos policiais na rua, não poderia ser diferente. Domingo, segundo dia de nossa visita, contamos mais de sessenta policiais na Praça central da cidade. Resumo: ótima viagem, experiências trocadas. Só não fomos assistir a uma partida de futebol. Também seria gostar demais do esporte bretão. Saludos, do Lenio.

COLUNA DO JORNAL "O SUL" (14/05)

TUDO CULPA DA PÓS-MODERNIDADE
Vivemos em tempos “pós-modernos”. Tudo é fluido. Não há mais fundamentos. Por exemplo, a dita pós-modernidade está acabando com a língua. Vivemos em um “imaginário twitter”, que vem a calhar para quem quer pensar pouco e ler menos ainda: “seu mundo em 140 caracteres” – eis a promessa pós-moderna. Qualquer anônimo se transforma em “alguém”, twittando. Nestes tempos “líquidos”, em que tudo escorre por entre os dedos, como a areia da ampulheta, estamos sendo imbecilizados. Já notaram que a TV ajuda muito nisso? O repórter só consegue falar da enchente quando está com água pelo pescoço. “O trigo subiu de preço”... e onde está o (ou a) repórter? No meio do trigal. Bingo! Você está proibido de pensar. O discurso pós-moderno deve ser prêt-à-porter, prêt-a-parler e prêt-à-penser (como ninguém mais lê, traduzo: pronto para usar, para falar e para pensar). Já vem tudo empacotado.

TUDO CULPA DA PÓS-MODERNIDADE II - PALAVRAS E COISAS
Pensam que isso não é sério? Buscamos sempre facilidades. A comunicação tem que ser direta, dizem. Não pode haver “floreios” linguísticos. Use jargões. Facilite a vida do telespectador, ouvinte ou leitor, com tiradas a la Hommer Simpson. Mais: seja eficiente, buscando a isomorfia entre palavras e coisas. Outro dia vi uma reportagem na TV, em que uma filosófa/dublê de repórter tentava explicar o Mito da Caverna, de Platão (sabe aquele filósofo?). E, adivinhem, onde ela fez a reportagem? No interior da caverna, é claro...! Ou seja, nenhum imbecil imaginaria que Mito da Caverna tem a ver com uma caverna (aqui estou sendo sarcástico, é claro). Logo depois, a moça buscou explicar a filosofia de Heráclito, filósofo do movimento. Onde foi a locação? Bingo! Em cima de um caminhão... Sabem como é: movimento, caminhão, andando...! É por isso que eu vou estocar comida. O caos é iminente.

TUDO CULPA DA PÓS-MODERNIDADE III - SHAKESPEARE E O TWITTER
Não tenho twitter. Acho que as coisas que penso e quero dizer não cabem em 140 caracteres. Para mim, o mundo é muito mais complexo. Tenho a convicção de que a palavra “rosa” não carrega o seu perfume. E nem na palavra Grêmio cabe toda a paixão tricolor. Já pensaram o que diria Shakespeare sobre o twitter? Vejamos essa parte da peça Julio Cesar: “De uma feita, numa tarde enublada e tempestuosa, em que o Tibre agitado se batia dentro das próprias margens, perguntou-me Cesar: ‘Cássio, ousarias atirar-te junto comigo, na corrente infensa e nadar até ali?’ A corrente roncava. Cesar gritou: ‘Socorro, Cássio! Afogo-me’ (citei de memória)”. Se fosse no twitter, simplesmente se diria: “Cássio e Cesar acabaram de se atirar no Rio Tibre e quase morreram. Incrível. Que vergonha. Cesar não sabia nadar. Cássio o salvou”. Pronto! Ora, assim como as palavras não carregam as coisas, a linguagem não consegue abarcar tudo. Os psicanalistas (e os hermeneutas, onde me incluo) sempre dizem que “sempre sobra algo quando se diz algo”. Muito bem. Mas, com a “era twitter”, vocês não acham que sobra demais? Ainda: a quem interessa que o cachorro da atriz fulana fez xixi no tapete? Ou que o diretor de futebol de determinado clube tem um cachorro de tal raça? Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução... No twitter, esse trecho de Drummond viraria “Vejam: Raimundo não gosta de seu nome; quer mudar; que coisa, não? Esse Raimundo...Te liga!”. E eu vou estocar comida. De verdade. Sem twitter.

Sobre a decisão do STF (uniões homoafetivas)

Primeiro, quero cumprimentar e dar os parabéns pelo magnífico trabalho na montagem do facebook. Como eu não tenho tempo e paciência, somente com a iniciativa da Malu, da Clarissa e do Ariel é que daria certo uma empreitada deste tipo. Foi uma grata surpresa para mim. Gracias mesmo. Prometo que, de quando em vez, mandarei noticias, comentando o "circo jurídico" de terrae brasilis.
Segundo e aproveitando o ensejo: o tema da moda foi a decisão do STF sobre as uniões homoafetivas. Desde há muito tenho escrito (está em Verdade e Consenso e em texto que publicamos Vicente Barreto, Rafael Tomaz de Oliveira e eu na revista RECHTD e no Jusnavegandi) que sou absolutamente a favor, não só das uniões homoafetivas, como a que todos tenham os direitos civis disso decorrentes. Com relação à união estável e as repercussões disso decorrentes, sempre vi um obstáculo: o texto da Constituição, que fala "homem e mulher".
Ou seja, sempre afirmei que, sem uma lei ou uma emenda a Constituição, não se poderia equiparar as uniões estáveis entre casais homossexuais e casais heterossexuais. Aliás, em países conservadores como Portugal e Espanha, a solução foi a feitura de lei ou plebiscito. Por que, no Brasil, essa questão tem que ser resolvida de forma ativista, no STF? Uma coisa é o STF decidir nos espaços que decorrem das omissões (in)constitucionais e dos problemas de (in)compatibilidade entre leis infraconstitucionais e o texto da Constituição. No caso em pauta, é a Constituição que estabelece um limite semântico-pragmático.
A questão que preocupa, portanto, na decisão do STF, é o tipo de interpretação conforme feita pelo STF. Primeiro, não seria uma interpretação conforme e, sim, no modo como dito pelo Min. Ayres Brito, uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto); segundo, como fazer uma interpretação conforme (sic) de uma lei que diz exatamente o que diz a Constituição? Levemos o texto da Constituição a sério, pois. Como se sabe, a "fórmula" da ICC é: este dispositivo somente é constitucional se interpretado no sentido da Constituição...! Logo, a fórmula fica assim: o dispositivo que fala "homem e mulher" somente é constitucional se interpretado e lido no sentido da Constituição (que fala exatamente a mesma coisa)...! O Brasil criou uma nova forma de interpretação conforme. Uma brasilianischeverfassungskonforme Auslegung.
Como se vê, há (houve) apenas uma justificativa para a decisão: a justeza da causa. Neste ponto, estaria de acordo. Nunca neguei que a causa fosse (e é) justa. Só que há tantas outras causas justas no Brasil e nem por isso o STF faz (ou fez) esse tipo de "atravessamento hermenêutico". A expressiva maioria dos juristas brasileiros aprovaram a decisão do STF. Portanto, aprovaram uma atitude ativista. O que farão os juristas quando o ativismo não for favorável às suas ideias ou teses? Sim, porque o ativismo não tem controle, pela simples razão de que é “ativista”. Ativismo quer dizer “substituir o legislador nos juízos político-morais”.
Insisto: não há espaço para o STF preencher "lacunas". E, quais lacunas? Se admitirmos lacunas constitucionais contra a própria Constituição, a pergunta que fica é: o que o STF não poderá fazer? Quais os limites do STF?
Ainda: dizer que "o que não está proibido, está permitido" é um sofisma, pela simples razão de que é um argumento que vai ao infinito. Posso listar, aqui, um conjunto de coisas que não estão proibidas pela Constituição e nem por isso passarão a ser permitidas. No fundo, trata-se de uma questão de imaginário. Warat dizia que os juristas estão inseridos em um imaginário gnosiológico. Nele, existe a crença de que os juízes criam direito, que os juízes julgam conforme a sua consciência e que decidir é o mesmo que escolher. Como venho dizendo de há muito, na esteira de Dworkin: não importa o que os juízes pensam a respeito dos fatos, da sociedade, etc; quando julgam, devem suspender tais pré-juízos. Não importa o que eu penso sobre determinado assunto. A resposta que tenho que dar é: de acordo com a Constituição e com o ordenamento jurídico, tal resposta é possível? A Constituição permite isso? Entre minha consciência e a Constituição, tenho que ficar com a Constituição. Para quem não pensa desse modo, lamento informar que esse é ônus da democracia. Quando alguém me pergunta sobre a viabilidade das cotas nas universidades, não posso responder a partir de minha concepção pessoal. A resposta deve advir do exame da Constituição. Do mesmo modo, acho justíssima a causa que compôs a ADPF das uniões homoafetivas. Mas isso não quer dizer que essa justa causa não tenha que passar pelos canais democráticos. Aliás, é desnecessário lembrar a minha trajetória no direito. Desde a década de 80 que defendo a democracia, as lutas a favor das minorias, a teoria crítica. Fui um dos primeiros a incluir Ferrajoli no direito penal e processual no Brasil. Basta ver o que tenho escrito nestes anos todos; basta ver a minha atuação junto ao Tribunal de Justiça do RS como Procurador de Justiça. Quem iniciou as discussões mais críticas para preservar direitos fundamentais? É só ler os pareceres do Ministerio Público e os acórdãos onde atuei.
Quase por último, não se venha dizer que nos Estados Unidos há decisões da Suprema Corte a respeito. Sem problemas. Não consta que a Constituição norte-americana tenha um dispositivo como o do nosso art. 226. Ou não existe diferença entre constituição analíticas e não analíticas?
Agora, por último: para aqueles que vêm dizendo em alguns sites por aí de que a minha defesa da dicção (limites semânticos-pragmáticos) da Constituição é uma forma de positivismo, permito-me, para não gastar pólvora em chimango (expressão bem gaúcha), remeter o leitor para o meu artigo denominado APLICAR A LETRA DA LEI É UMA ATITUDE POSITIVISTA? (http://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/2308/1623), que também será a seguir postado no facebook. Peço que, para que se dissipem as algaravias a respeito do que seja positivismo, que esse texto (Aplicar a letra...) seja lido como um romance. Do início ao fim. Depois, continuarei o debate para quem ainda ache que a defesa da Constituição (mesmo que seja a sua “letra fria” – sic) é uma forma de positivismo. De todo modo, em um país em que ainda se confunde o positivismo exegético com o normativista, tudo é possível. O velho Elías Díaz sempre me ajuda nisso: em termpos de estado democrático de Direito, a legalidade será sempre uma “legalidade constitucional”. O resto é século XIX. Saludos, Lenio.

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